sábado, 26 de abril de 2014

Sobre a doutrina pura do direito de Hans Kelsen

Kelsen, no prefácio à primeira edição de sua Teoria Pura do Direito, (São Paulo: Martins Fontes, 2006) diz expressamente: “Há mais de duas décadas que empreendi desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos de ciência natural, uma teoria jurídica consciente da sua especificidade porque consciente da especificidade do seu objeto. Logo desde o começo foi meu intento elevar a Jurisprudência, que – aberta ou veladamente – se esgotava quase por completo em raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do espírito. Importava explicar, não as suas tendências endereçadas à formação do Direito, mas as suas tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito, e aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda a ciência: objetividade e exatidão". (grifei)
Na p. 01 reforça: “Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer seu próprio objeto”.
Também é verdade que, no sentido da teoria do conhecimento de Kant, a ciência jurídica como conhecimento do direito, assim como todo conhecimento, tem caráter constitutivo e, por conseguinte produz” seu objeto na medida em que o apreende como um todo com sentido”. (pp. 81 e 82)
Logo, Kelsen constitui (produz) o objeto que ele deseja única e exclusivamente conhecer em sua doutrina pura do direito. Ele não visa ao conhecimento do fenômeno jurídico (direito), mas o conhecimento de um objeto criado por ele mesmo, baseado nessa perspectiva de teoria do conhecimento de Kant.
Na verdade, o direito que constitui objeto deste conhecimento é uma ordem normativa da conduta humana”. p. 5.
Kelsen não diz que o direito (fenômeno jurídico) seja “uma ordem normativa da conduta humana”, mas o direito, que constitui objeto do conhecimento da doutrina pura do direito, “é uma ordem normativa da conduta humana”.
Em português, a oração é subordinada adjetiva explicativa, uma vez que a interposição de vírgulas condiciona a tal entendimento. Porém, pelo contexto da obra em análise e baseado em meus limitados conhecimentos de alemão, no original, a oração é restritiva e o tradutor não deveria ter colocado as vírgulas.
Auf die Normen nun, die den Charakter von Rechtsnormen haben und gewissen Tatbeständen den Charakter von Rechts-(oder Unrechts-) Akten verleihen, ist die Rechtserkenntinis gerichtet. Denn das Recht, das den Gegenstand dieser Erkenntnis bildet, ist eine normative Ordnung menschlichen Verhaltens, und das heißt, ein System von menschliches Verhalten regelnden Normen”. (Kelsen, Hans. Reine Rechtslehre. 2. Auflage. Wien: Franz Deuticke, 1960. S. 4).
Kelsen não conceitua direito, mas o objeto de sua teoria pura (criado, kantianamente, por ele). Embora o tradutor português tenha escorregado, a oração alemã é restritiva.
A Teoria Pura do Direito limita-se a uma análise estrutural do Direito positivo, baseada em um estudo comparativo das ordens sociais que efetivamente existem e existiram historicamente sob o nome de Direito. Portanto, o problema da origem do Direito – o Direito em geral ou uma ordem jurídica em particular – isto é, das causas da existência do Direito em geral ou de uma ordem jurídica particular, com seu conteúdo específico, ultrapassa o escopo desta teoria. São problemas da sociologia e da história e, como tais, exigem métodos totalmente diferentes dos da uma análise estrutural de ordens jurídicas dadas. A diferença metodológica entre uma análise estrutural do Direito, por uma lado, e a sociologia e a história do Direito, por outro, é similar à diferença entre a teologia e a sociologia ou a história da religião. O objeto da Teologia é Deus, tido como existente; o objeto da sociologia e da história da religião é a crença dos homens em Deus ou em deuses, quer exista quer não o objeto dessa crença. A Teoria Pura do Direito trata o Direito como um sistema de normas válidas criadas por atos de seres humanos. É uma abordagem jurídica do problema do Direito. A sociologia e a história do Direito tentam descrever e explicar o fato de que os homens têm uma ideia diferente de Direito em diferentes épocas e lugares e o fato de que os homens conformam ou não conformam suas condutas a essas ideias. É evidente que o pensamento jurídico difere do pensamento sociológico e histórico. A ‘pureza’ de uma teoria do Direito que se propõe uma análise estrutural de ordens jurídicas positivas consiste em nada mais que eliminar de sua esfera problemas que exijam um método diferente do que é adequado ao seu problema específico. O postulado da pureza é a exigência indispensável de evitar o sincretismo de métodos, um postulado que a jurisprudência tradicional não respeita ou não respeita suficientemente. A eliminação de um problema da esfera da Teoria Pura do Direito não implica, é claro, negar a legitimidade desse problema ou da ciência que dele trata. O Direito pode ser objeto de diversas ciências; a Teoria Pura do Direito nunca pretendeu ser a única ciência do Direito possível ou legítima. A sociologia do Direito e a história do Direito são outras. Elas, juntamente com a análise estrutural do Direito, são necessárias para um compreensão completa do fenômeno complexo do Direito.” KELSEN, Hans. Direito, Estado e Justiça na Teoria Pura do Direito. In: KELSEN, Hans. O que é Justiça. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001, pp. 285-300, pp. 291-292 (grifou-se)

“The law may be the object of different sciences; the Pure Theory of Law has never claimed to be the only possible or legitimate science of law. Sociology of law and history of law are others. They, together with the structural analysis of law, are necessary for a complete understanding of the complex phenomenon of law.” Hans Kelsen. What is justice?: Justice, law, and politics in the mirror of science; collected essays. University of California Press, 1957. p. 294. 

Nenhum comentário: