quarta-feira, 24 de abril de 2013

DEVINIÊNCIA JURÍDICA

Há realidades que devem ser concebidas como processos. Configuram-se como um ir sendo, de modo que sua realização consiste em sua atualização. Nessa perspectiva, realizar equivalerá, em alguma medida, a mudar. Realidades consistentes em sucessões transitórias são realidades devinientes. Elas se caracterizam pelo contínuo devir, devém, regeneram-se incessantemente.
O direito apresenta-se como realidade deviniente. Não existe direito definitivo, invariavelmente constituído. O direito se configura em contínua transformação.
José Lourenço de Oliveira e Xavier Zubiri usam o termo deveniente (de devenir) e José Ferrater Mora deviniente (de devir), mas ambos expressando a mesma ideia. O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa [5ª edição, São Paulo: Global, 2009] traz tanto o verbo devir, quanto devenir e os dicionários registram-nos como sinônimos, significando “vir a ser; tornar-se, transformar-se”, derivando do latim devenire. O Dicionário Houaiss registra o ingresso de devir na língua portuguesa por volta do século XIII e de devenir no final do século XIX. Embora as expressões deveniente e deveniência sejam mais recorrentes (ainda que não constem do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, são expressões muito usadas em obras sobre literatura, história, filosofia, entre outras), nessa tese, optou-se pelo uso de deviniente (deviniência) pela precedência e maior incidência de devir. Deveniente é termo latino conhecido e utilizado, desde há muito, pelos sábios, dentre eles os juristas. Apenas a título exemplificativo (sem pretensão exauriente): Andreæ Fachinei, Cornelius van Pijnacker, Controversiarum juris libri tredecim, H. Demen, 1678. p. 870. Thomæ Le Blanc, Psalmorum Davidicorum Analysis, Tomus Tertius, Friess, 1682. pp. 1587 e 1588. Antonij de Gamma. Decisionum supremi Senatus Lusitaniae Centuriæ IV, J. B. Verdussen, 1683. p. 43. Robert Joseph Pothier, Daniel Jousse, Pandectes de Justinien, Dondey-Dupré, 1822. p. 474, nota 7.

domingo, 21 de abril de 2013

O guardião da constituição

Um grande equívoco de muitos ditos constitucionalistas consiste em considerar constituição como “conjunto das normas fundamentais do sistema”. Confundem, portanto, constituição (algo em constituição, construção) com legislação constitucional. Não bastasse, ainda trabalham na ultrapassada perspectiva de encarar o direito como sistema.

Constituição mostra-se como construção, expressa-se como algo em ininterrupta formação. Decisões do STF constituem um tijolo a mais nessa contínua construção. Na permanente constituição (construção), tijolos poderão ser, indefinidamente, reformados, retirados e/ou recolocados.

A constituição deve ser percebida dinamicamente. Entre o ainda não e não mais. Sua realização nas demandas jurídicas, “hoje (agora)”, afigura-se como produção dos tribunais e, em última instância judiciária, do Supremo Tribunal Federal. A constituição realizada por meio de determinação judiciária “será do tamanho que a ela” o Supremo Tribunal Federal atribuir “na amplitude dos” juízos de seus ministros, caso contem com adesão popular.

“O direito é uma prudência, no âmbito da qual não se encontram respostas exatas, senão uma multiplicidade de respostas corretas [melhor seria se tivesse dito, na linha de Kelsen, autênticas]. (...) A Constituição diz o que nós, juízes desta Corte, dizemos que ela diz. Nós transformamos em normas o texto escrito da Constituição... Nós, aqui neste Tribunal, nós produzimos as normas que compõem a Constituição do Brasil hoje, agora. Nós é que, em derradeira instância, damos vida à Constituição, vivificamos a Constituição. E ela será do tamanho que a ela atribuirmos na amplitude dos nossos juízos”. [Ministro Eros Grau em voto na ADI 4219-SP].

“Sendo assim e considerando que a atividade de interpretar os enunciados normativos, produzidos pelo legislador, está cometida constitucionalmente ao Poder Judiciário, seu intérprete oficial, podemos afirmar, parafraseando a doutrina, que o conteúdo da norma não é, necessariamente, aquele sugerido pela doutrina, ou pelos juristas ou advogados, e nem mesmo o que foi imaginado ou querido em seu processo de formação pelo legislador; o conteúdo da norma é aquele, e tão somente aquele, que o Poder Judiciário diz que é. Mais especificamente, podemos dizer, como se diz dos enunciados constitucionais (= a Constituição é aquilo que o STF, seu intérprete e guardião, diz que é), que as leis federais são aquilo que o STJ, seu guardião e intérprete constitucional, diz que são." [AI nos EREsp 644736/PE, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Corte Especial, julgado em 06/06/2007, DJ 27/08/2007, p. 170]

A constituição realizada mediante decisão jurisdicional só não se revelará como tal, caso o povo não aceite os resultados exarados da corte maior e se revolte contra eles. Aos que não se conformarem com a determinação judiciária, resta, apenas, a possibilidade (em alguma medida, cívica e benfazeja) de buscar convencer os demais a derrubá-la pela via da revolta. Uma vez acatada pacificamente pelo povo, a determinação de constitucionalidade emanada do pretório excelso será autêntica (alguns preferem legítima), isto é, representará a configuração do constitucional em dada demanda e, assim, constituirá direito.

Por outro lado, mostra-se aconselhável lembrar que – embora possa parecer que “o conteúdo da norma é aquele, e tão somente aquele, que o Poder Judiciário diz que é” e, na maioria das vezes, o que parece se confirma – o guardião da constituição da constituição não é, ao contrário do que pensa o ministro Teori Zavascki, o Supremo Tribunal Federal, mas a soberania popular latente [no preciso sentido lexical de “presente de forma inativa, mas passível de vir à tona”].