quinta-feira, 20 de maio de 2010

Comentários do Professor Hélcio à Carta do Reitor da USP de 14 de maio

Caros amigos,
Do esboço à versão final.
Sugerimos divulgá-la amplamente, se concordarem.

Um abraço,

Hélcio
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Ilustríssimos Membros da Comunidade Acadêmica da Faculdade de Direito,

Seguem alguns comentários à Carta do Reitor de 14 de maio, divulgada a todos, por e-mail, no dia 17 de maio.


GR/CIRC/250

São Paulo, 14 de maio de 2010.

Ref.: Sobre a Faculdade de Direito da USP

À Comunidade Uspiana:

Nos últimos dias, a mídia tem tratado de questões relativas à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Tendo ocupado, de agosto de 2006 a janeiro de 2010, o cargo de Diretor da mesma, e sendo Reitor da USP desde então, é meu dever informar a comunidade uspiana, sendo um direito de toda ela conhecer o quadro completo, para que cada qual possa fazer seu próprio juízo sobre a problemática. Tal é necessário, por ser toda a referência ao Reitor de interesse da Universidade e por ser a cobertura da imprensa episódica.

Concordamos com as premissas. O Reitor deve se manifestar e informar, ainda que muito tardiamente venha fazê-lo.

Em primeiro lugar, é preciso deixar assente que a Biblioteca Central da FD, composta dos livros mais antigos, e que significa quase a totalidade do acervo, nunca foi mudada, continuando aberta, desde a década de 30 do passado século, nos três andares a ela destinados, quando da construção do prédio principal da Faculdade. A parte do acervo transferida para o novo prédio é composta de livros das chamadas Bibliotecas dos Departamentos, que se formaram paulatinamente, a partir de 1972, e que ocupavam seis salas de aula na parte frontal do 2º andar do referido prédio.

Primeira mentira: as bibliotecas dos Departamentos não se formaram "paulatinamente", do nada. Já decorreram do desmembramento dos livros existentes da Biblioteca Central, que não tinha mais espaço.

Segunda mentira ou uma "meia verdade": as bibliotecas dos Departamentos também são compostas por livros muito antigos e raros. Podem não ser os mais antigos, mas são tão raros quanto os da Central. Decorreram de uma seleção e não de um acúmulo histórico. Estão mais organizados, mais acessíveis e são prioritariamente os jurídicos mais pesquisados, enquanto a Biblioteca Central permaneceu com vocação multidisciplinar. Os livros das bibliotecas departamentais são os mais usados pelos pesquisadores de Direito.

Terceira mentira: As bibliotecas departamentais não ocupavam a parte frontal do 2º andar em 1972. Ao contrário, espalhavam-se no segundo e no terceiro andares, descentralizadas. A origem das bibliotecas departamentais está na Reforma Universitária, no final dos anos 60 (1968). Antes havia a Central, reorganizada por Sérgio Milliet nos anos 30, logo depois da criação da USP. Já faltava espaço. Com a criação dos 10 Departamentos, foram criadas as Bibliotecas Departamentais, resolvendo parcialmente o problema do espaço, com a seleção de livros por área do conhecimento. Em 1986 a biblioteca foi novamente reestruturada, passando para o SBD. Um espaço bem mais condigno foi preparado, com salas amplas, com ar-condicionado, sem barulho de automóveis (finalmente não ficavam mais as janelas abertas...) e espaço maior aos leitores. Esta reforma não foi providenciada pelo ex-Diretor Rodas. É anterior e significou um grande avanço. Foi a conquista de um espaço único para os pesquisadores e estudantes, com condições de estudo individual e em grupo, além do acesso unificado.

As Departamentais só foram reunidas no segundo andar, quando houve inauguração do prédio novo e mudança dos departamentos, em 1993-1994.

Tanto a questão da transferência da Biblioteca dos Departamentos quanto a da construção de salas de aulas modernas, e respectivos nomes, estão interligadas.

Quarta mentira. Esta ligação interessa ao Diretor para facilitar sua defesa. Há inúmeras salas que podem se modernizar - não era preciso construir duas novas. Ademais, salas novas poderiam ser feitas nos prédios anexos. Mas a Faculdade está sendo cada vez mais ocupada por outras coisas. No final da gestão, Rodas inaugura uma agência de banco privado em local privilegiado e estratégico dentro da Faculdade (este banco ajudou a pagar as mudanças de Rodas, tinha como protagonista de seus anúncios a ex-reitora da USP, e não interessa diretamente à comunidade uspiana, pois os docentes e as contas públicas estão relacionados com banco estatal que não possui agência na Faculdade). Cui prodest? A quem interessa? Outro grande e estratégico espaço é concedido a uma livraria privada, ao mesmo tempo em que uma livraria da EDUSP, mal-localizada, periférica e com acesso dificultado, é obrigada a sair. E as duas tais "salas modernas" não foram construídas como salas de aula, mas como "salas especiais" para eventos especiais. Não para o dia-a-dia da graduação. Não dependiam do espaço da biblioteca. O nome, tampouco. Outro grande espaço é destinado ao Juizado Especial da Justiça Federal, trazido inopinadamente. Outro grande espaço é ocupado pela Associação dos Antigos Alunos.

Chegando à diretoria da FD, em agosto de 2006, deparei-me com uma instituição que, embora tradicional, não possuía condições mínimas para poder continuar na vanguarda das 1.200 faculdades de direito do país: o espaço não era suficiente para abrigar seus 4.000 alunos (nem mesmo sanitários suficientes havia); o número de alunos por sala de aula era de cerca de 115; praticamente inexistia equipamento audiovisual (apenas três projetores de vídeo), o projeto pedagógico e a grade curricular eram antiquados etc.

Quinta mentira. Afirmar que não "havia condições mínimas" é ofender a história. O que faz a grandiosidade de uma instituição não são as instalações, mas as pessoas que a vivificam. E com estas "condições mínimas" muito se fez e muito se faz.

Os sanitários foram meramente reformados, sem necessidade de novas instalações. Fato rotineiro que o Diretor pretendeu transformar em "façanha" de sua gestão. Nunca houve um aluno fora da faculdade ou apertado. Como não havia espaço suficiente para abrigar seus “4 mil alunos”? Na verdade são só dois mil e seiscentos alunos de graduação (o ex-diretor inflou os números; talvez para abarcar os de pós-graduação e de outros eventos, que se utilizam do Prédio Anexo). E equipamento audiovisual é mera aquisição exigida pelos tempos. A USP pôde e pode comprá-los sem vender "investiduras" medievais. Sem precisar vender uma placa de marketing pessoal a um "doador", em troca da indulgência popular que transforme um "doador, por ser doador" em "numen jurídico, em sumidade acadêmica". As homenagens devem ser proporcionais. Doações são bem-vindas e dignas, desde que não simulem trocas privadas em público ambiente.

O primeiro passo foi propor mudança do projeto pedagógico e da grande curricular, o que aconteceu no final de 2006. Em resumo, cada aluno tem a possibilidade de poder escolher, uma a uma, 40% das matérias que cursará, passando as classes a abrigar não mais de cerca de 50 alunos.

Sexta mentira. Até agora não há um projeto pedagógico. Nunca houve um projeto pedagógico. Apresente-se a ata da Comissão de Graduação em que tenha havido discussão de propostas que superem três folhas de algum esboço. Quando se discutiu a grade? Quem discutiu? O que houve foi um corte sangrento nas disciplinas, com redução de carga horária de quase 1/3. Transformação de disciplinas obrigatórias em optativas. Não houve anteprojeto, tampouco debate dos temas pedagógicos ou das relações entre as disciplinas. Ninguém discutiu os eixos de formação acadêmica. Ninguém discutiu as finalidades profissionais. Ninguém discutiu o perfil profissional e acadêmico do curso. Tudo às pressas, a pretexto de "modernização": diminuir a carga horária, aumentar o número de docentes.

O que houve foi uma mudança de grade às pressas, sem ouvir os alunos e os docentes - que foram meramente instados, em sistema de urgência, a reduzir a suas cargas horárias, com prazo, "por ofício" do diretor. A “modernização” da grade não contou com nenhum ideal pedagógico moderno, com nenhum estudo prévio. Alguns alunos até propuseram o início de uma discussão. Não foram ouvidos.

Duas providências fizeram-se necessárias: 1) aumento do número de docentes, o que foi conseguido com um acréscimo de 60 professores, que passaram de cerca de 100 para 160; e 2) aumento do espaço físico, pois novas salas eram necessárias para acomodar classes com um menor número de alunos.Pela localização da FD, mais espaço somente poderia ser conseguido pela desapropriação de prédios contíguos. Assim, no final de 2006, a meu pedido, o Governo do Estado desapropriou um prédio de 12 andares na Rua Riachuelo nº 201, prédio esse que foi dedicado para sediar toda a parte administrativa da Faculdade.

Não houve aumento no número de alunos. As disciplinas optativas passaram a ser oferecidas a turmas únicas, ajuntando salas. Reduziu-se o número de aulas. E as salas grandes tornaram-se ociosas, pois não comportam divisão física sem prejuízo ao patrimônio cultural. As necessidades, portanto, são menores do que a apregoada. Os dois prédios anexos comportam as salas de número reduzido de alunos. A "modernização" da maior parte das disciplinas foi a redução de sua carga horária e a multiplicação delas. Em vez de um professor lecionar, por exemplo, "duas aulas duplas, para duas turmas" passou ele a lecionar "uma aula simples, para cada uma das quatro turmas novas". Diminui-se assim metade do conteúdo do curso, para que, em vez de dar aula para 115, dê-se para aproximadamente 55 matriculados. Repete-se mais, proporciona-se menos contéudo. Ora, se a discussão fosse pedagógica, e não só de relação matemática aluno-docente, bastava solucionar proporcionando o que já se fazia antes entre muitos docentes: divisão de turmas com assistentes, com grupos de pesquisa, com monitorias autorizadas, com uso de salas dos prédios anexos, etc. A mudança de grade foi uma mudança econômica, jamais pedagógica. Não houve discussão do projeto pedagógico. Sequer houve projeto pedagógico. Degravem-se as reuniões da CG e da Congregação e não se verá discussão de projeto, mas apenas de redução de carga horária da grade e de transformação de disciplinas existentes em disciplinas optativas. Exceções (uma ou outra disciplina criada ou de nome alterado) podem apenas confirmar a regra; e não decorreram de projeto pedagógico, mas de alteração departamental independente.

Em 2009, a Prefeitura de São Paulo cedeu à FD o prédio da Av. Brigadeiro Luiz Antonio nº 42, destinado a abrigar a Seção de Apoio Acadêmico e Auditórios para a defesa de dissertações de Mestrado e de Doutorado. Finalmente, o prédio de 10 andares da Rua Senador Feijó nºs 197 e 205, cuja desapropriação foi efetivada, feita pelo Governo Estadual, em 30 de dezembro de 2009.

Caso não se tomasse medida urgente, não haveria oito salas de aulas disponíveis para os 460 alunos que começariam seus cursos em 2010. Seria necessário que as classes voltassem a ter 115 alunos, quando as classes das turmas anteriores já eram de cerca de 55 alunos! Para resolver a questão do ensino, básica em uma faculdade, decidi, com o aval escrito de ampla maioria do Conselho Técnico-Administrativo da FD, reformar quatro andares do prédio da R. Senador Feijó e transferir, durante as férias, os livros da Biblioteca dos Departamentos, na certeza de que, havendo diligência, em cerca de, no máximo, dois meses, a novel biblioteca poderia novamente ser aberta. Em final de janeiro, ainda não se tinha a posse dos cinco andares superiores do prédio da R. Senador Feijó, somente entregues em março. Como não estão ainda reformados, e por medida de segurança, a luz desses andares foi cortada e o acesso dos elevadores a eles impedido. Daí a notícia, dada pela metade, de que o prédio em tela não possuía iluminação.

Se projeto pedagógico tivesse existido não haveria "urgências". Se houve urgência, deveu-se a falta de planejamento. Quanto à mudança da biblioteca, não é objetivo evidenciar aqui os problemas e as ilegalidades. O diretor não trouxe no seu manifesto fatos novos que justificassem o vilipêndio sofrido pelo acervo e a ofensa aos pesquisadores, docentes e alunos. As fotos e os “blogs” dos alunos dizem mais.

A contestação às medidas de modernização começou quando um professor, em junho de 2009, informou uma Procuradora do Ministério Público Federal de que a construção de duas salas e de cerca de 300m2 de sanitários, em curso na FD, não possuía autorização do Condephaat e de outros órgãos, requerendo o embargo da construção. Tal não aconteceu e a obra foi finalizada, por ser regular. Frustrado em seu intento, o referido professor iniciou uma campanha relativamente aos nomes das salas.

Sétima mentira. Deslavada. Aponte o nome do Professor e consulte a Procuradora.

Oitava mentira. As mudanças desejadas não ocorreram e o Inquérito Civil continua em curso. A pretensão de mudar a sala do fichário e a biblioteca foi impedida a tempo.

Nona mentira. Querer transformar as várias células independentes - de alunos, docentes e funcionários - que se insurgiram ou que criticamente aderiram às justas causas - em ato de rivalidade e emulação de um único docente é tentar mudar o foco da questão, intuito que como se pode ver é subjacente em todas as manifestações do ex-Diretor por intermédio da imprensa ou uso impróprio e personalista da lista de endereços da comunidade USP.

Quanto ao Inquérito Civil, há muitos fatos que merecem comentários em outra ocasião. A data correta foi março de 2009. Não houve licença da IPH do Município, que quis embargar a obra. A autorização do CONDEPHAT não contemplou mudança do segundo andar. Indagado pela Procuradora sobre planos para Biblioteca, o ex-diretor omitiu o projeto de transferência em sua resposta oficial ao Ministério Público, fato que causou prejuízos graves à justiça, à confiabilidade de suas ações e, principalmente, causou os prejuízos de que hoje somos todos vítimas.

O Diretor da FD que me antecedeu restaurou as fachadas externas do prédio principal e requereu o tombamento do prédio, não tendo se ocupado de um ponto vital, qual seja: trocar sua antiquada fiação elétrica, composta de fios grossos de cobre revestidos de pano! Tais fios, após setenta anos de sua instalação, representam um grande risco de incêndio. Não sendo possível paralisar totalmente a utilização do prédio, frequentado diariamente por 4.000 pessoas, optei por fazê-lo por partes. Foi trocada a fiação em cinco salas do térreo e do primeiro andar e, nas duas salas e sanitários construídos pelos doadores, a fiação é moderna, com ligações diretas sem conexão com a fiação antiga. Os projetos já feitos para a restauração do Salão Nobre e de seis salas de aula do segundo andar, ora paralisados, contemplam a segurança elétrica. Uma razão a mais para que a FD passasse a dispor de outros espaços é dividir o número tanto de pessoas quanto de bens (inclusive acervo bibliográfico) em vários lugares, abrindo espaço no prédio tradicional, para reformas, máxime as relativas à segurança.

Os fatos e as fotos dizem mais. Vejam-se as fotos das instalações elétricas no local onde os livros foram armazenados indevidamente (Exemplos: http://182-21.blogspot.com/). O ex-Diretor desconhece a própria história da Faculdade que dirigiu, pois a fiação elétrica da Biblioteca Central foi trocada com “projeto FAPESP” na direção do prof. Villaça. A Biblioteca sempre teve uma política de preservação muito forte, sempre reconhecida pela comunidade acadêmica.

A referência ao “Diretor que o antecedeu” é argumento falacioso e "ad hominem". Rodas quer justificar seus erros mostrando que outros supostamente erraram no passado. Lamentável esta atitude.

No que tange à segurança, não se pode esquecer a situação, há anos, justamente dos livros que compõem a Biblioteca Central da FD. Nos três andares a ela destinados, os livros estão nas estantes, amontoados em mesas localizadas entre tais estantes (que atravancam a passagem em caso de emergência), e até mesmo os peitoris das janelas são utilizados como prateleiras para livros, que sofrem diretamente a ação do sol e da umidade! Eu mesmo observei o que acabo de descrever. As encarregadas da Biblioteca nunca me alertaram enquanto Diretor, nem fizeram qualquer movimento do tipo: “Cadê a segurança das bibliotecas”.

Novamente quer apontar falhas anteriores. Pequeníssimas, se comparadas à temerária situação em que deixou os livros. Facilmente sanáveis. Em algumas horas e sem interrupção dos serviços da biblioteca. Por que não sanou nos seus três anos de mandato? Por que não expressou antes seu descontentamento com os "peitoris"? Não há comparação entre supostas e até hoje inéditas falhas anteriores com a ofensa ao acervo, ao direito, aos alunos, à comunidade, às gerações, à história e à tradição.

Nesse ponto, é necessário dizer que, em 2007, a Associação dos Antigos Alunos, a Diretoria da FD e o Centro Acadêmico “XI de Agôsto” haviam encetado uma campanha para a obtenção de fundos para dotar a FD de salas de aulas com vedação acústica, ar condicionado, mobiliário consentâneo e aparelhamentos eletrônicos modernos, pois as salas existentes eram medievais. A campanha não foi muito bem sucedida, na parte que objetivava contribuição de R$ 1.000,00 de cada antigo aluno, pois somente cerca de R$ 650.000,00 foram arrecadados. Contudo, surgiu a possibilidade de que dois grandes doadores construíssem, cada qual, uma sala nos moldes acima, além de sanitários modernos, inclusive para pessoas com necessidades especiais, até então inexistentes. Isso foi noticiado, inclusive com fotos, pela grande mídia, sendo do conhecimento generalizado. Documento foi assinado pela Associação dos Antigos Alunos, pela Diretoria e, como testemunhas, por representantes de importantes agremiações discentes da FD. Não se assumia obrigação final, mas unicamente de levá-lo à consideração dos “órgãos competentes da FD”, o que foi feito.

O Diretor anterior já havia procedido à modernização de muitas das salas. As doações dariam continuidade às reformas. Elas são bem-vindas quando beneméritas em reconhecimento (não em confronto) ao deveres da Universidade Pública. Mas a venda de "indulgências" (i.e. condescendência benevolente na avaliação de algo, ausência de rigor, benevolência, transigência) concedendo imortalidade acadêmica a quem não participou historicamente da tradição das Arcadas, foi uma usurpação indevida da memória social. Pelo metal. Pela aurea sacra fames.

Quanto à questão dos nomes das salas, é importante lembrar que há salas na FD com nome de não professor – a Sala Visconde de São Leopoldo. Por outro lado, na Universidade de São Paulo inexiste proibição de se colocar nome de aluno ou de terceiros: a Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” tem o nome do doador do respectivo terreno; há, na Escola Politécnica, um prédio nominado Olavo Setubal, ex-aluno ilustre e doador. Finalmente, o Diretor da FD que me antecedeu utilizou, sem qualquer contestação, a praxe de nominar salas por ato solitário. Nomeei as salas Pinheiro Neto e Pedro Conde, pois, além de antigos alunos, foram pioneiros, respectivamente, no estabelecimento da advocacia internacional no Brasil e na construção do sistema financeiro nacional. Não o fiz solitariamente, pois havia aval escrito de 39 membros, a maioria da Congregação da FD. Há quinze dias, levada à mesma Congregação, tal foi aprovado por maioria. Insatisfeita, a minoria fez atos públicos. É importante lembrar que a FD possui 4.000 alunos e cerca de 200 funcionários. Assim, a quantidade de pessoas reunida em tais atos, menos de duas centenas, que contou com ajuda externa e do sindicato em greve, em um mês tradicionalmente tenso, não é significativa.

Quem alertará o ex-Diretor sobre a importância histórica de Visconde de São Leopoldo na História do Direito Brasileiro, especialmente na História da Fundação dos Cursos Jurídicos no país?

Novamente quer se escusar de seu erro alegando que o mesmo comportamento foi protagonizado pelo diretor anterior. Uma coisa é o diretor anterior, respeitando a consciência acadêmica, restaurar e nominar um "Páteo dos Calouros", uma "Sala Miguel Reale" e uma "Sala Alexandre Correia". O notório dispensa justificativa. Quem iria negar a importância e a legitimidade das três homenagens para a História da Faculdade? O argumento do Reitor é pífio. Não é argumento, mas mera falácia. A de que um erro anterior (não ter havido grande debate antes da aprovação) justificaria a sua atitude (de nominar as salas segundo sua tirânica disposição contra os costumes e contra o bom senso).

O que está em jogo não é a nova localização da Biblioteca dos Departamentos, nem o nome das salas, é muito mais do que isso. É a modernização da FD; a continuidade do projeto pedagógico e da grade curricular; a posição da FD na vanguarda do ensino jurídico brasileiro etc.

Slogan” repetido e negritado para fugir da realidade. Não houve modernização da grade, que foi unilateralmente alterada como foram as demais ações de mudar a biblioteca e lotear a faculdade para particulares doadores e entidades privadas. Não há projeto pedagógico (salvo se para o Reitor "projeto pedagógico" signifique grade de disciplinas). Apresente-o, Reitor! Coloque-o no site da faculdade, para que haja transparência! Nomine os seus autores! Apresente provas de ter havido discussão nos órgãos interdisciplinares e não mera discussão de corte de disciplinas!

A oposição aos conceitos acima se faz por vários pequenos grupos, cujo único ponto agora em comum é conseguir bandeiras para seus próprios objetivos. Esses objetivos podem ser: conseguir ganhar as eleições para o Centro Acadêmico “XI de Agôsto” ou para as representações acadêmicas com assento nos órgãos colegiados; influenciar a nova diretoria da FD; começar campanha para a próxima diretoria da FD; manter, por parte de um grupo de bibliotecárias, o férreo controle exercido com sentido de posse, por décadas, sobre as Bibliotecas da FD; utilizar-se do contexto para aumentar a agitação sindical; etc.

Ofensas genéricas, lamentáveis. Interpretação generalista das consciências individuais dos docentes, funcionários e alunos. Insensibilidade. Incapacidade de perceber que generalizações ofendem não somente as pessoas, mas a própria ciência, e em particular, a ciência do Direito. O conhecimento científico, de que é representante, é justamente uma das conquistas intelectuais humanas para combater a generalização. Quer transformar a questão em "luta de poder", em vez de perceber que se trata de uma "luta pelo saber".

Qual a razão de as bibliotecas dos Departamentos, renominada Biblioteca São Francisco da FD, ainda não estar totalmente aberta?

Em primeiro lugar, as bibliotecárias acima referidas, ao invés de terem colaborado mais intensamente para a colocação dos livros nas estantes nos quatro andares do prédio da R. Senador Feijó, passaram a fomentar o descontentamento, promovendo campanha e utilizando bótons com a inscrição “Cadê a Biblioteca”. Essa campanha contrária teve vários lances obscuros: o da “inundação”, que teria danificado centenas de livros e que, depois se verificou, resumia-se a uma torneira deixada aberta (!), não tendo havido realmente qualquer dano; o de que o prédio não teria condições, nem luz elétrica, quando isso procede unicamente com relação aos cinco andares superiores, não utilizados; a disseminação de que a transferência da Biblioteca dos Departamentos era mero capricho, quando objetivava criar espaços necessários para salas de aula e aumentar a segurança. De boa-fé, o lógico teria sido colocar os livros nas estantes dos andares reformados e, em havendo necessidade de espaço em outros andares, disponibilizá-lo de maneira rápida.

Sobre a biblioteca, deixemos de tecer comentários. Os fatos são notórios e contrariam as alegações. As acusações sem provas, às nossas heróicas bibliotecárias, são as últimas tentativas de se defender. Não justificam as portarias secretas, a insensibilidade, os maus-tratos aos livros e a paralisação subitânea da pesquisa na Faculdade de Direito.

A Biblioteca da FD tem um dos maiores horários de atendimento da USP, com 75 horas semanais. É a biblioteca que atende o maior público externo da USP. Durante as greves na gestão do Prof. Marchi e Rodas as departamentais e a BCI sempre funcionaram. Aponte um aluno, um professor, um pesquisador que deixou de ser prontamente atendido, seja em uma pesquisa bibliográfica, seja em uma busca difícil. Quantos eventos não promovem a nossa Biblioteca! Quanta informação útil é por ela veiculada mensalmente nos repertórios bibliográficos e no Arauto! Como pode alguém atacar nossos grandes valores? Como um Diretor nomeia, no último dia de mandato, alguém para um cargo tão importante? E como uma Diretora nova, vendo a situação dos livros e das bibliotecárias ofendidas, consente e não renuncia? Como a diretora da biblioteca pode não gostar de livros?

E o ex-Reitor acusa as bibliotecárias de agirem de má-fé, de não serem rápidas para colocar os livros nas estantes. Como se biblioteca fossem livros na estante. Como se dolo pudesse ser presumido. Como se fosse possível ocupar o deplorável edifício.

É de ser lembrado que cerca de um terço dos funcionários da FD — cerca de 60 pessoas — são lotados nas Bibliotecas. Quando das greves tradicionais ocorridas na USP, as bibliotecas são as primeiras a serem paralisadas.

Outra mentira deslavada. Deixo de contá-las. Como dissemos, durante as greves na gestão do Prof. Marchi e Rodas as departamentais e a BCI sempre funcionaram. Ofensa gratuita aos respeitáveis funcionários.

Mesmo em tempos normais, os horários de abertura das mesmas não são de modo a possibilitar amplo acesso aos alunos e a todos os cidadãos, pois se tratam de bibliotecas públicas. Desde o início de minha gestão, labutei para que as bibliotecas ficassem abertas aos sábados por mais tempo. Mesmo a então Reitora tendo possibilitado pagamento de horas extras para tanto, o máximo que consegui foi manter a abertura aos sábados, em horário diminuto e somente para alunos da FD! Apesar disso, nunca vi protestos por paralisação das bibliotecas nas frequentes greves e pela exiguidade e discriminação de sua abertura. Os funcionários das bibliotecas da FD possuem dois grupos principais, que sempre viveram às turras: o grupo das bibliotecárias dirigentes, que ficaram no poder por muitos anos, antes de serem por mim substituídas em janeiro passado, e outro grupo formado por militantes do sindicato dos funcionários da USP. Nos episódios da transferência parcial da biblioteca, ambos os grupos passaram a ter um ponto de convergência. O que fazer, agora, para regularizar a questão das bibliotecas?

Respeitamos as eventuais e salutares divergências políticas existentes entre os funcionários. E a convergência deles em defesa da biblioteca é digna de louvor, não de crítica negativa.

Cabe à direção da FD decidir pela volta ou não do acervo para o prédio principal, sopesando o impacto futuro de tal decisão em termos de: segurança (inclusive a elétrica); de espaço para salas de aula; e, finalmente, de poder reabrir total e mais rapidamente a antiga Biblioteca dos Departamentos.

Como Pilatos, quer lavar suas mãos. Cabe ao causador sanar as conseqüências de seus atos secretos, de suas contratações secretas (algumas estritamente secretas, como a que celebrou e assinou com a Microsoft para “gratuitamente” digitalizar o acervo, sem aprovação da FADUSP. Este contrato contém cláusulas – nulas obviamente - que exigem que se mantenha secreto). Cabe ao causador dos danos reconhecer os erros e tentar remediá-los. Somos uma Comunidade, por lei e por razão de vida. E a vida comunitária aceita, como na família, os erros e as correções com tolerância. Temos valores comuns e podemos fazer o melhor para remediar.

A Reitoria poderia ter colaborado nesses meses e pode ainda colaborar com a FD, tanto na reforma dos cinco andares superiores do prédio da R. Senador Feijó, o que pode ser realizado em curto espaço de tempo. Em razão da relativa autonomia de que gozam as Unidades da USP, é imprescindível uma solicitação da Diretoria da FD; caso contrário seria uma intervenção indevida. De minha parte, conservo a confiança que sempre tive no atual Diretor, que atuou ao meu lado como Vice-Diretor e foi por mim escolhido Diretor, em lista tríplice.

Como Reitor da USP, que conta com 40 Unidades de Ensino e Pesquisa, resta-me esperar que, na mais antiga delas — a FD — prevaleça o bom senso, à altura de sua tradição quase bicentenária.

João Grandino Rodas

Reitor

Como ocorreu no início, concordamos com este final de texto do Sr. Reitor, também.

A Reitoria poderia ter colaborado, mas não colaborou nestes meses: omitiu-se e só se manifestou quando a crise chegou aos jornais.

A autonomia da Faculdade precisava mesmo ser preservada. Para isso, bastava reconhecer que suas ações foram individuais, sem respeito à vontade dos membros da Comunidade Acadêmica que gozavam da referida autonomia.

O Reitor pode ainda colaborar. Mande uma força tarefa. Reconheça o erro. Use todos os seus meios secretos para convencer que a melhor solução é a renúncia. Renúncia a uma luta injusta que pretende travar. Renúncia à nomeação de uma bibliotecária que não gosta de livros. Renúncia a atitudes tirânicas. Renúncia ao uso da imprensa para veicular as falsidades acima apontadas. Renúncia às generalizações e à homenagens desproporcionais. Renúncia ao conflito, quando a paz pode ser alcançada.

Doação é ato gratuito. Gratuito é o que não requer pagamento. Gratuito, para o Sr. Reitor, é o que rende dividendos políticos ou encargos sociais não desejados pela própria sociedade destinatária. As doações gratuitas podem até ser remuneratórias, em agradecimento aos bons serviços prestados pela donatária USP. Mas não se pode “ser munífico” e exigir ao mesmo tempo “que se pareça munífico”. Aliás, é o exemplo clássico e corriqueiro de simulação.

Assim doamos, todos, o nosso tempo por esta causa. Com fins políticos verdadeiros: pensando no que é bom para a nossa pólis presente e futura. Sem fins promocionais ou de grupos, sentido pejorativo de que faz uso somente o ex-diretor. E para depois nos recolhermos todos para a insignificância diária, como parafraseou um de nossos amigos.

Ass. Os "Amici Librorum"

Os Amigos dos Livros da Faculdade de Direito da USP


terça-feira, 11 de maio de 2010

Na Sala Secreta do Concurso para Professor Titular de Direito Penal

[Observação: publico em meu blog esse manifesto sem autorização do autor, mas apenas no sentido de dar maior divulgação a assunto de tamanha relevância para a comunidade jurídica]

Na Sala Secreta do Concurso para Professor Titular de Direito Penal

Prof. Sérgio Luiz Souza Araújo

“Quão resvaladio é o terreno do Direito, posto que nele muitas vezes escorregam os que escrevem com letras de ouro”.

A afirmação do Prof. Fernando da Costa Tourinho Filho ilustra muito bem o acontecido no dia 05 de maio de 2010, na vetusta Casa de Afonso Pena, dia em que o Direito, em nome do Direito Penal, foi solenemente massacrado.

Cheguei ao hall da Sala da Congregação para assistir ao concurso público para professor titular de direito penal da nossa Faculdade de Direito da UFMG às 8 h da manhã e encontrei os três candidatos cujas inscrições haviam sido deferidas: Prof. Carlos Augusto Gonçalves Canedo, Profa. Daniela de Freitas Marques e Profa. Sheila Jorge Selim de Sales. À portas fechadas, em sigilo, estava reunida a Banca Examinadora, composta pelos Profs. Jair Leonardo Lopes (professor titular na UFMG), Luis Regis Prado (professor titular na universidade de Maringá, PR), Juarez Tavares (professor titular na Universidade Estadual do Rio de Janeiro), João Mestieri (professor titular intento na Cândido Mendes, RJ) e René Ariel Dotti (professor titular na Universidade Federal do Paraná). As pessoas conversavam animadamente quando chegou ao local o diretor da Faculdade, Prof. Joaquim Carlos Salgado que, logo em seguida, foi convocado para adentrar a sala secreta, prosseguindo a sala com portas fechadas. Em seguida o diretor retirou-se e foi ao seu gabinete, convocando apenas dois candidatos, Prof. Canedo e Profa. Daniela. Momentos mais tarde ouvimos o Prof. Canedo dizer que os dogmatas não haviam aprovado o seu trabalho. Sem saber ao certo o que acontecia, percebemos que a banca se dirigiu para a sala da congregação pela passagem lateral, tendo a Profa. Sheila assentado-se diante da imponente mesa com forro vermelho, sob o retrato de Afonso Pena. Sem qualquer tipo de esclarecimento ou informação, o Prof. Jair fez uma saudação inicial, agradeceu a participação dos componentes e passou a palavra para o primeiro argüente, Prof. Luís Régis Prado que também nada esclareceu aos presentes. E assim prosseguiram os trabalhos no primeiro dia, com as duras argüições e ácidas críticas ao trabalho da candidata, sem que soubéssemos exatamente o que acontecera com os demais candidatos.

No dia seguinte, dia 06 de maio, às 9 h, iniciava-se o seminário da Profa. Sheila que assentada de costas para o público começou a falar sobre o bem jurídico no Direito Penal. No momento em que o Prof. Juarez Tavares fazia os seus comentários, diante de um recinto lotado, a Banca se sentiu pressionada, pois os estudantes presentes começaram a levantar folhas de papel de caderno onde haviam escrito o nome dos demais candidatos excluídos das defesas.

Finalmente e tão somente, é que a Banca assumia publicamente que havia indeferido “in limine” as teses dos demais candidatos, com a justificativa de que as mesmas não eram teses de “direito penal” como era exigência do Edital do Concurso.

De outra face, é de sabença geral que uma tese tem que constituir uma contribuição original e autêntica. Sob esse ponto de vista a tese da profa. Sheila também teria que ser liminarmente rejeitada de vez que o Prof. Juarez Tavares encerrou a sua argüição, asseverando: “v. senhoria escolheu o dolo eventual como tema para a tese, mas nem de forma eventual ofereceu qualquer contribuição para o assunto.”

Outra grave contradição aconteceu quando o Prof. René Ariel Dotti explicou que as outras teses tinham sido indeferidas porque não possuíam conclusão. Mas no dia anterior, Os professores Luis Regis Prado, Juarez Tavares e João Mestieri afirmaram, categoricamente, que a tese da Profa. Sheila também não possuía conclusão.

A Sala secreta trouxe à minha mente as impressões que colhi da Sala Secreta do famigerado Tribunal do Santo Ofício que visitei no Museu da Inquisição em Lima, no Peru. As práticas do Tribunal do Santo Ofício nos processos inquisitoriais foram rememoradas em recentes seminários de processo penal que realizamos na Faculdade. (Os setecentos anos de horror da inquisição: condenando em nome de Deus e em nome do pecado (2008). Fé, Império e Castigo. O Processo Penal na História do Brasil (2009). Mas há outro episódio do concurso que revelou com clareza meridiana como os ranços inquisitoriais estão sempre presentes na atualidade. Uma vez tendo decidido, secretamente, sem o crivo do contraditório, pela eliminação ab ovo de dois professores da Faculdade de Direito da UFMG, a Comissão Examinadora chamou o diretor, passando-lhe o encargo de dar a notícia aos eliminados. O Tribunal do Santo Ofício não aceitava sujar as mãos de sangue, e quando condenava à morte natural, à forca ou à fogueira, entregava a competência para execução da pena ao braço secular.

Na inquisição, o saber era privilégio absoluto do órgão de acusação. Todas as funções de acusar e julgar se concentravam nas mãos da mesma pessoa. Os acusados nos processo penais inquisitoriais não estavam diante de juízes, mas de inquisidores, posto que chamavam para si o privilégio da verdade, o monopólio do saber.

Uma banca que decreta que teses são impróprias para o concurso de titular de direito penal antes mesmo de serem defendidas, age de forma inquisitorial. Impede o controle da legalidade do seu ato. No Estado Democrático de Direito, nenhum ato de poder, seja a lei, seja a sentença, seja qualquer ato praticado pela Administração Pública, pode atingir o universo jurídico de uma pessoa sem dar a ela a oportunidade de defender-se. É essa a grandeza da garantia constitucional do contraditório. Já dizia Sêneca: “quando o juiz após ouvir somente uma das partes sentencia, talvez seja a sentença justa. Mas justo não será o juiz”.

No atual estágio da nossa evolução jurídica, também não se admite segredo nos negócios públicos. Feriu-se de morte o princípio da publicidade, pois impediu ao público em geral e à comunidade acadêmica de exercer um controle sobre os atos da Banca para saber o acerto ou o desacerto daquela decisão. Convém trazer à lume a velha e atualíssima lição de Mirabeau:Donnez –moi le juge que vous voudrez: partial, corrupt, mon ennemi même, peu m’ importe, si vous voulez; pourvu qu´il ne peut rien faire qu’a la face du public’. No Estado Democrático de Direito o poder se exerce sob a disciplina da norma jurídica, sob o império do Direito. A decisão da banca causou perplexidade, pois o arbítrio mostrou as garras e os dentes de onde menos poderíamos esperar e compreende-se, portanto, a manifestação dos estudantes que, ao improvisarem um protesto, exigiam o respeito pela dignidade do Direito. Não poderia haver sigilo ou segredo no procedimento da Banca. Ademais, argumentava o Prof. René Ariel Dotti que assim procederam para preservar os dois candidatos, evitando um constrangimento público. Ora, como se explica, então, que a tese da profa. Sheila tenha sido reprovada por unanimidade? Refiro-me à unanimidade dos professores externos que comparecem numa banca exatamente como garantia de imparcialidade. A profa. Sheila teve a tese reprovada com três notas 40 e uma nota 50. Nas defesas de tese da UFMG, para aprovação de uma tese, nos termos das normas gerais de pós-graduação, o candidato tem que lograr a aprovação unânime dos membros da banca examinadora. Ou seja, basta uma única nota inferior a 70 para que uma tese seja reprovada. O único membro da banca a lançar 70 pontos na defesa de tese foi o Prof. Jair Leonardo Lopes, seu orientador no Mestrado e que, a rigor, não deveria participar do concurso se fosse observada recomendação do Ministério Público Federal no sentido de se evitar membro julgador que tenha sido orientador de dissertação ou tese de candidato. A recomendação foi observada pelo Chefe do Departamento, Prof. Marcelo Leonardo, em dois concursos imediatamente anteriores no Departamento de Direito e Processo Penal. Mas, no concurso para titular, foi ignorada.

A tese do Prof. Canedo sobre criminologia e a tese da Profa. Daniela, sobre história do direito penal foram indeferidas, sem defesa, sob o argumento de que não seriam teses de Direito penal. Qual é o locus acadêmico para a defesa de uma tese sobre criminologia? A Faculdade de Medicina?

A profa. Carla Maria Junho Anastasia passou por situação semelhante no concurso para titular de História do Brasil: “A minha tese foi muito criticada pela banca examinadora pelo uso de matrizes teórico-conceituais e bibliografia de viés sociológico e/ou político em detrimento de obras historiográficas que se dedicam ao tema da violência coletiva ou, melhor dizendo, pela “falta” de História e “excesso” de Ciência Política. Na época do concurso, 1995, fiquei muito impressionada, e até mesmo perplexa, com as críticas à construção teórica do meu argumento, com a constatação dos examinadores de que eu me utilizava de conceitos pouco afeitos ao campo historiográfico, como, por exemplo, o de soberania, e com o espanto da banca face à minha defesa intransigente da existência de direitos costumeiros nas Minas setecentistas. Não obstante tantas considerações negativas, mas absolutamente convencida de que a História não é meramente crônica e, portanto, de que a minha construção teórica-conceitual era procedente, acabei por publicar o trabalho em 1998”. (A geografia do crime. Violência nas minas setecentistas. Belo Horizonte: UFMG, 2005). Relata ainda que prosseguiu suas pesquisas e que hoje os direitos costumeiros é tema corriqueiro trabalhado por vários historiadores e que ela continua aberta às críticas dos historiadores hard.

Mas o que é Direito Penal? É o que está na cabeça dos membros da banca ou o que está previsto como conteúdo programático da disciplina direito penal na matriz curricular do Curso de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais? Qualquer pessoa que acessar o programa da disciplina direito penal I, no site da Faculdade na internet, poderá verificar que constituem matéria de estudo os seguintes temas: direito penal e ciência do direito penal. Direito penal e outros ramos da ciência jurídica: direito constitucional, administrativo, cível. Ciências criminais: criminologia, política criminal, história do direito penal comparado. Ciências auxiliares do direito penal. Síntese histórica do direito penal. Direito penal romano. Direito penal germânico. Direito penal canônico. Período humanitário. A era das codificações. Etc.

Lamentavelmente a banca examinadora ao indeferir uma tese sob o argumento de que se tratava de história incorreu em equívoco contribuindo para a fragilidade e inconsistência da pesquisa jurídica. Necessária a lição do Prof. Carlos Eduardo de Abreu Boucault: “É induvidoso de que a História, expressa por suas teorias e metodologia próprias, exsurge como um processo criativo de perspectivas teóricas, fomentando tanto sistema de produção legislativa, ou normativa, numa acepção mais ampla e rica, como desvendando os recursos institucionais e valorativos da interpretação normativa” (História e método em pesquisa jurídica. São Paulo: Quartier Latina, 2006). A orientação da banca revela como o ensino do direito penal no Brasil conserva o modelo da escola dogmática.

E o princípio da oralidade proclamado em todos os meios acadêmicos e forenses? Um advogado ainda que apresente um arrazoado de centenas de páginas como razões de um recurso terá a oportunidade, em qualquer tribunal, de fazer uma sustentação oral. O texto escrito não capta as múltiplas dimensões da inteligência. Devemos sempre buscar a verdade. É pelo argumento e contra-argumento que nos aproximamos da verdade. Ensina Carnelutti: “Assim vemos no processo as partes combaterem uma com a outra batendo as pedras, de modo que termina por fazer que solte a centelha da verdade”.

Portanto, sob o fundamento de que as teses não pertiniam ao direito penal, os candidatos foram desclassificados sem defendê-las, em flagrante violação à letra e ao espírito dos ordenamentos institucionais da UFMG. Mas a candidata que, teoricamente, elaborara tese de direito penal, teve a tese reprovada por quatro examinadores. Por quê no primeiro caso o fato foi impeditivo de prosseguimento no concurso e, no segundo, a inexistência de tese ou, a tese inepta, não constituiu um óbice para que a candidata fosse considerada aprovada como professora titular de direito penal ? Não seria uma contraditctio in extremis?
Fico imaginando se algum dos membros da Banca Examinadora tivesse avaliado o concurso para professor titular de História do Brasil da UFMG, da Profa. Carla Maria Junho Anastasia, cuja tese vitoriosa foi intitulada “A geografia do crime”. É bem provável que com a compreensão de ciência externada pelos penalistas da banca a tese também seria indeferida liminarmente, ou por ser de geografia, ou por ser de direito penal!