terça-feira, 11 de maio de 2010

Na Sala Secreta do Concurso para Professor Titular de Direito Penal

[Observação: publico em meu blog esse manifesto sem autorização do autor, mas apenas no sentido de dar maior divulgação a assunto de tamanha relevância para a comunidade jurídica]

Na Sala Secreta do Concurso para Professor Titular de Direito Penal

Prof. Sérgio Luiz Souza Araújo

“Quão resvaladio é o terreno do Direito, posto que nele muitas vezes escorregam os que escrevem com letras de ouro”.

A afirmação do Prof. Fernando da Costa Tourinho Filho ilustra muito bem o acontecido no dia 05 de maio de 2010, na vetusta Casa de Afonso Pena, dia em que o Direito, em nome do Direito Penal, foi solenemente massacrado.

Cheguei ao hall da Sala da Congregação para assistir ao concurso público para professor titular de direito penal da nossa Faculdade de Direito da UFMG às 8 h da manhã e encontrei os três candidatos cujas inscrições haviam sido deferidas: Prof. Carlos Augusto Gonçalves Canedo, Profa. Daniela de Freitas Marques e Profa. Sheila Jorge Selim de Sales. À portas fechadas, em sigilo, estava reunida a Banca Examinadora, composta pelos Profs. Jair Leonardo Lopes (professor titular na UFMG), Luis Regis Prado (professor titular na universidade de Maringá, PR), Juarez Tavares (professor titular na Universidade Estadual do Rio de Janeiro), João Mestieri (professor titular intento na Cândido Mendes, RJ) e René Ariel Dotti (professor titular na Universidade Federal do Paraná). As pessoas conversavam animadamente quando chegou ao local o diretor da Faculdade, Prof. Joaquim Carlos Salgado que, logo em seguida, foi convocado para adentrar a sala secreta, prosseguindo a sala com portas fechadas. Em seguida o diretor retirou-se e foi ao seu gabinete, convocando apenas dois candidatos, Prof. Canedo e Profa. Daniela. Momentos mais tarde ouvimos o Prof. Canedo dizer que os dogmatas não haviam aprovado o seu trabalho. Sem saber ao certo o que acontecia, percebemos que a banca se dirigiu para a sala da congregação pela passagem lateral, tendo a Profa. Sheila assentado-se diante da imponente mesa com forro vermelho, sob o retrato de Afonso Pena. Sem qualquer tipo de esclarecimento ou informação, o Prof. Jair fez uma saudação inicial, agradeceu a participação dos componentes e passou a palavra para o primeiro argüente, Prof. Luís Régis Prado que também nada esclareceu aos presentes. E assim prosseguiram os trabalhos no primeiro dia, com as duras argüições e ácidas críticas ao trabalho da candidata, sem que soubéssemos exatamente o que acontecera com os demais candidatos.

No dia seguinte, dia 06 de maio, às 9 h, iniciava-se o seminário da Profa. Sheila que assentada de costas para o público começou a falar sobre o bem jurídico no Direito Penal. No momento em que o Prof. Juarez Tavares fazia os seus comentários, diante de um recinto lotado, a Banca se sentiu pressionada, pois os estudantes presentes começaram a levantar folhas de papel de caderno onde haviam escrito o nome dos demais candidatos excluídos das defesas.

Finalmente e tão somente, é que a Banca assumia publicamente que havia indeferido “in limine” as teses dos demais candidatos, com a justificativa de que as mesmas não eram teses de “direito penal” como era exigência do Edital do Concurso.

De outra face, é de sabença geral que uma tese tem que constituir uma contribuição original e autêntica. Sob esse ponto de vista a tese da profa. Sheila também teria que ser liminarmente rejeitada de vez que o Prof. Juarez Tavares encerrou a sua argüição, asseverando: “v. senhoria escolheu o dolo eventual como tema para a tese, mas nem de forma eventual ofereceu qualquer contribuição para o assunto.”

Outra grave contradição aconteceu quando o Prof. René Ariel Dotti explicou que as outras teses tinham sido indeferidas porque não possuíam conclusão. Mas no dia anterior, Os professores Luis Regis Prado, Juarez Tavares e João Mestieri afirmaram, categoricamente, que a tese da Profa. Sheila também não possuía conclusão.

A Sala secreta trouxe à minha mente as impressões que colhi da Sala Secreta do famigerado Tribunal do Santo Ofício que visitei no Museu da Inquisição em Lima, no Peru. As práticas do Tribunal do Santo Ofício nos processos inquisitoriais foram rememoradas em recentes seminários de processo penal que realizamos na Faculdade. (Os setecentos anos de horror da inquisição: condenando em nome de Deus e em nome do pecado (2008). Fé, Império e Castigo. O Processo Penal na História do Brasil (2009). Mas há outro episódio do concurso que revelou com clareza meridiana como os ranços inquisitoriais estão sempre presentes na atualidade. Uma vez tendo decidido, secretamente, sem o crivo do contraditório, pela eliminação ab ovo de dois professores da Faculdade de Direito da UFMG, a Comissão Examinadora chamou o diretor, passando-lhe o encargo de dar a notícia aos eliminados. O Tribunal do Santo Ofício não aceitava sujar as mãos de sangue, e quando condenava à morte natural, à forca ou à fogueira, entregava a competência para execução da pena ao braço secular.

Na inquisição, o saber era privilégio absoluto do órgão de acusação. Todas as funções de acusar e julgar se concentravam nas mãos da mesma pessoa. Os acusados nos processo penais inquisitoriais não estavam diante de juízes, mas de inquisidores, posto que chamavam para si o privilégio da verdade, o monopólio do saber.

Uma banca que decreta que teses são impróprias para o concurso de titular de direito penal antes mesmo de serem defendidas, age de forma inquisitorial. Impede o controle da legalidade do seu ato. No Estado Democrático de Direito, nenhum ato de poder, seja a lei, seja a sentença, seja qualquer ato praticado pela Administração Pública, pode atingir o universo jurídico de uma pessoa sem dar a ela a oportunidade de defender-se. É essa a grandeza da garantia constitucional do contraditório. Já dizia Sêneca: “quando o juiz após ouvir somente uma das partes sentencia, talvez seja a sentença justa. Mas justo não será o juiz”.

No atual estágio da nossa evolução jurídica, também não se admite segredo nos negócios públicos. Feriu-se de morte o princípio da publicidade, pois impediu ao público em geral e à comunidade acadêmica de exercer um controle sobre os atos da Banca para saber o acerto ou o desacerto daquela decisão. Convém trazer à lume a velha e atualíssima lição de Mirabeau:Donnez –moi le juge que vous voudrez: partial, corrupt, mon ennemi même, peu m’ importe, si vous voulez; pourvu qu´il ne peut rien faire qu’a la face du public’. No Estado Democrático de Direito o poder se exerce sob a disciplina da norma jurídica, sob o império do Direito. A decisão da banca causou perplexidade, pois o arbítrio mostrou as garras e os dentes de onde menos poderíamos esperar e compreende-se, portanto, a manifestação dos estudantes que, ao improvisarem um protesto, exigiam o respeito pela dignidade do Direito. Não poderia haver sigilo ou segredo no procedimento da Banca. Ademais, argumentava o Prof. René Ariel Dotti que assim procederam para preservar os dois candidatos, evitando um constrangimento público. Ora, como se explica, então, que a tese da profa. Sheila tenha sido reprovada por unanimidade? Refiro-me à unanimidade dos professores externos que comparecem numa banca exatamente como garantia de imparcialidade. A profa. Sheila teve a tese reprovada com três notas 40 e uma nota 50. Nas defesas de tese da UFMG, para aprovação de uma tese, nos termos das normas gerais de pós-graduação, o candidato tem que lograr a aprovação unânime dos membros da banca examinadora. Ou seja, basta uma única nota inferior a 70 para que uma tese seja reprovada. O único membro da banca a lançar 70 pontos na defesa de tese foi o Prof. Jair Leonardo Lopes, seu orientador no Mestrado e que, a rigor, não deveria participar do concurso se fosse observada recomendação do Ministério Público Federal no sentido de se evitar membro julgador que tenha sido orientador de dissertação ou tese de candidato. A recomendação foi observada pelo Chefe do Departamento, Prof. Marcelo Leonardo, em dois concursos imediatamente anteriores no Departamento de Direito e Processo Penal. Mas, no concurso para titular, foi ignorada.

A tese do Prof. Canedo sobre criminologia e a tese da Profa. Daniela, sobre história do direito penal foram indeferidas, sem defesa, sob o argumento de que não seriam teses de Direito penal. Qual é o locus acadêmico para a defesa de uma tese sobre criminologia? A Faculdade de Medicina?

A profa. Carla Maria Junho Anastasia passou por situação semelhante no concurso para titular de História do Brasil: “A minha tese foi muito criticada pela banca examinadora pelo uso de matrizes teórico-conceituais e bibliografia de viés sociológico e/ou político em detrimento de obras historiográficas que se dedicam ao tema da violência coletiva ou, melhor dizendo, pela “falta” de História e “excesso” de Ciência Política. Na época do concurso, 1995, fiquei muito impressionada, e até mesmo perplexa, com as críticas à construção teórica do meu argumento, com a constatação dos examinadores de que eu me utilizava de conceitos pouco afeitos ao campo historiográfico, como, por exemplo, o de soberania, e com o espanto da banca face à minha defesa intransigente da existência de direitos costumeiros nas Minas setecentistas. Não obstante tantas considerações negativas, mas absolutamente convencida de que a História não é meramente crônica e, portanto, de que a minha construção teórica-conceitual era procedente, acabei por publicar o trabalho em 1998”. (A geografia do crime. Violência nas minas setecentistas. Belo Horizonte: UFMG, 2005). Relata ainda que prosseguiu suas pesquisas e que hoje os direitos costumeiros é tema corriqueiro trabalhado por vários historiadores e que ela continua aberta às críticas dos historiadores hard.

Mas o que é Direito Penal? É o que está na cabeça dos membros da banca ou o que está previsto como conteúdo programático da disciplina direito penal na matriz curricular do Curso de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais? Qualquer pessoa que acessar o programa da disciplina direito penal I, no site da Faculdade na internet, poderá verificar que constituem matéria de estudo os seguintes temas: direito penal e ciência do direito penal. Direito penal e outros ramos da ciência jurídica: direito constitucional, administrativo, cível. Ciências criminais: criminologia, política criminal, história do direito penal comparado. Ciências auxiliares do direito penal. Síntese histórica do direito penal. Direito penal romano. Direito penal germânico. Direito penal canônico. Período humanitário. A era das codificações. Etc.

Lamentavelmente a banca examinadora ao indeferir uma tese sob o argumento de que se tratava de história incorreu em equívoco contribuindo para a fragilidade e inconsistência da pesquisa jurídica. Necessária a lição do Prof. Carlos Eduardo de Abreu Boucault: “É induvidoso de que a História, expressa por suas teorias e metodologia próprias, exsurge como um processo criativo de perspectivas teóricas, fomentando tanto sistema de produção legislativa, ou normativa, numa acepção mais ampla e rica, como desvendando os recursos institucionais e valorativos da interpretação normativa” (História e método em pesquisa jurídica. São Paulo: Quartier Latina, 2006). A orientação da banca revela como o ensino do direito penal no Brasil conserva o modelo da escola dogmática.

E o princípio da oralidade proclamado em todos os meios acadêmicos e forenses? Um advogado ainda que apresente um arrazoado de centenas de páginas como razões de um recurso terá a oportunidade, em qualquer tribunal, de fazer uma sustentação oral. O texto escrito não capta as múltiplas dimensões da inteligência. Devemos sempre buscar a verdade. É pelo argumento e contra-argumento que nos aproximamos da verdade. Ensina Carnelutti: “Assim vemos no processo as partes combaterem uma com a outra batendo as pedras, de modo que termina por fazer que solte a centelha da verdade”.

Portanto, sob o fundamento de que as teses não pertiniam ao direito penal, os candidatos foram desclassificados sem defendê-las, em flagrante violação à letra e ao espírito dos ordenamentos institucionais da UFMG. Mas a candidata que, teoricamente, elaborara tese de direito penal, teve a tese reprovada por quatro examinadores. Por quê no primeiro caso o fato foi impeditivo de prosseguimento no concurso e, no segundo, a inexistência de tese ou, a tese inepta, não constituiu um óbice para que a candidata fosse considerada aprovada como professora titular de direito penal ? Não seria uma contraditctio in extremis?
Fico imaginando se algum dos membros da Banca Examinadora tivesse avaliado o concurso para professor titular de História do Brasil da UFMG, da Profa. Carla Maria Junho Anastasia, cuja tese vitoriosa foi intitulada “A geografia do crime”. É bem provável que com a compreensão de ciência externada pelos penalistas da banca a tese também seria indeferida liminarmente, ou por ser de geografia, ou por ser de direito penal!

Nenhum comentário: