domingo, 16 de junho de 2013

Insurreição dos vinte centavos e deviniência


"Sei, de, mais tarde, me dizerem: que tudo tinha e tomava o forte, belo sentido, esse drama do agora, desconhecido, estúrdio, de todos o mais bonito, que nunca houve, ninguém escreveu, não se podendo representar outra vez, e nunca mais. Eu via os do público assungados, gostando (...). Eu via - que a gente era outros - cada um de nós, transformado. (...) A coisa que aconteceu no meio da hora. Foi no ímpeto da glória - foi - sem combinação. Ressoaram outras muitas palmas." (Guimarães Rosa, Pirlimpsiquice)

Em 1973, Raul Seixas lançou seu primeiro álbum, Krig-ha, Bandolo!. O título se referia a um grito de guerra do personagem Tarzan, conhecido à época nas revistas em quadrinhos da EBAL. Significa “Cuidado, aí vem o inimigo!”. [Elton Frans, redação de Roberto Murcia Moura, Raul Seixas: a história que não foi contada, Irmãos Vitale, 2000. p. 103.]

Na terceira faixa do disco Krig-ha, Bandolo!, Metamorfose Ambulante. “Prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. 

Aquela velha opinião formada sobre tudo não compreenderá a insurreição dos vinte centavos que, aliás, nem é sobre vinte centavos.

Aquela velha opinião formada sobre tudo reclamará da ausência de líderes, onde todos lideram. Falará em falta de foco, onde o agir é multifocável. Criticará a mistura de causas e bandeiras por ser incapaz de compreender a transversalidade de propósitos e a diversificação de ideias em processos de ininterruptas elaborações.

Aquela velha opinião formada sobre tudo tentará identificar partidos, associações, movimentos sociais organizados por trás do movimento, pois não conseguirá perceber o movimento em movimento do movimento pelo movimento.

Aquela velha opinião formada sobre tudo não verá que o movimento representa a ultrapassagem de sua forma de visão, de identificação, de estigmatização, de rotulação.

Aquela velha opinião formada sobre tudo dirá que o movimento não tem uma opinião formada, justamente por não conseguir enxergar opiniões em formação, em contínua construção coletiva.

Aquela velha opinião formada sobre tudo sustentará que não há um ponto em comum que nos une, pois não assimilará que somos o ponto comum da união de diversos pontos que se interconectam formando redes lançadas por navegantes de mares nunca dantes navegados.

Há realidades em ininterruptas transformações, concebíveis como processos. Regeneram-se incessantemente e se caracterizam pelo contínuo devir: devêm. Nesses casos, realizar-se corresponderá a atualizar-se. Realidades em sucessões transitórias são realidades devinientes.

O movimento vivenciado por nós se afigura como realidade deviniente. Realiza-se ao se reatualizar. Deve ser percebido em permanente alteração: ao vir-a-ser, nunca é, senão sendo.

A metamorfose ambulante é a marca do movimento, vivifica-o e lhe confere novas formas, expressando seu desencadear dinâmico em processos interpretativos confusos e complexos, mas repletos de fulgor e poesia.

Embora à primeira vista possam parecer desorientadores, os rumos de nosso movimento apresentam-se em condições de ser explorados destemidamente, porém impõe frequentes alterações de rotas.

O caminho a ser proposto em nada recorda mapas. Será aprendido caminhando, revelando-se após os primeiros passos. Sem buscar atalhos, suas sendas merecem ser percorridas com atenção, vivenciando-se veredas políticas vitais.

Deviação: insurreição adentro.

3 comentários:

Unknown disse...

Belíssimo texto, Osvaldo. Parece-me que a reação ao movimento, no entanto, "recorda alguns mapas" bem conhecidos, não?
Um abraço!
Mariana

Unknown disse...

Belíssimo texto, Osvaldo. Parece-me que a reação ao movimento, no entanto, percorre alguns mapas bem conhecidos, não?
Um abraço!

Unknown disse...

Muito bom texto!
E acredito que exatamente pela marca do movimento ser dinâmica e e repleto de fulgor e poesia, é que os protestos já estão sendo usados por grupos políticos...
Hoje, já fico tentando imaginar o futuro pós protestos...
Escrevi hoje:

“Fulano não me representa”.
Há algum tempo tenho ouvido essa frase, e, normalmente o fulano em questão é um agente político eleito pelo povo. O inconformismo demonstrado pelos protestos apartidários no Brasil demonstra um grave déficit de legitimidade da política representativa. Se as manifestações demonstram que o país é democrático, ao mesmo tempo, evidenciam uma “crise” da democracia.
“Segundo Chevallier, a crise da democracia deriva de quatro fatores principais: a crise da representatividade, a crise da participação, a crise da cidadania e a perda de referências. Daí a afirmação de que “A legitimidade dos representantes não é então adquirida pela simples magia da eleição: a democracia não se reduzirá nunca apenas aos processos eletivos; ela supõe ainda ao respeito ao pluralismo, a garantia dos direitos e liberdades, o debate sobre as escolhas coletivas... Em outras palavras, a legitimidade dos representantes depende de sua conformidade com certas exigências de ordem ética” (Marçal Justen Filho)
A democracia não é um modelo definitivo, perfeito e acabado, ainda bem. Trata-se de uma concepção em construção! Cabe a nós, a partir de agora, buscar mecanismos para aperfeiçoá-lo com mais ética, moralidade,pluralidade. Porém, como bem salientou o magistrado Marcelo Semer “a reinvenção da democracia pode introduzir novos atores e novos papéis à cena política. Mas dificilmente será exercida sem participação do povo, sem os partidos e sem o exercício consciente das liberdades” .