terça-feira, 21 de junho de 2011

Decisão contra união homoafetiva causa perplexidade?

Realmente, eu tento vos transmitir ideias extravagantes e saberes estranhos. Estou convencido, pela minha própria experiência, que não há nada de mais excitante e de mais radical do que ser posto perante coisas novas, inabituais, que nos despertam da modorra do senso comum, que abale o que é convencional, que convidem à dúvida e à crítica daquilo que está estabelecido. (…) Não faço isso para vos escandalizar. (…) Mas para vos habituar a exigir e a cultivar um saber esclarecido, plural, complexo, crítico, isto é, para vos habituar a ser exigentes… Tenho o dever de vos exigir que, perante o mundo, não sejam lorpas...” António Manuel Hespanha

Sou favorável à decisão tomada, unanimemente, pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em relação à união homoafetiva, mas li, com perplexidade, a notícia “Decisão contra união homoafetiva causa perplexidade”, publicada, em 20 de junho de 2011, no site “consultor jurídico”, assinada por Rodrigo Haidar.

As considerações que farei em torno da situação jurídica criada a partir da decisão do juiz Jeronymo Pedro Villas Boas, da 1ª Vara da Fazenda Pública de Goiânia, que cancelou a declaração de união estável de um casal homossexual de Goiás, na sexta-feira (17/6), cumprem muito mais o objetivo de questionarem certo modo de pensar o direito do que de analisarem o mérito envolvido na questão.

Segundo a notícia, o ministro Marco Aurélio teria dito à revista Consultor Jurídico que a decisão do juiz Jeronymo Pedro Villas Boas “certamente será derrubada pelo Supremo Tribunal Federal, se o casal recorrer à Corte.”

Chega a ser difícil acreditar que um ministro do STF tenha coragem de afirmar, peremptoriamente, que uma decisão de primeiro grau “certamente será derrubada pelo Supremo Tribunal Federal, se o casal recorrer à Corte.” [e olhe que não se trata de ministro que possa ser, sem maiores contestações, situado entre os sandeus do STF!] Como é sabido, vários posicionamentos do STF são alterados. Não raro, de um julgamento para o outro, ministros mudam completamente o entendimento sobre determinadas questões.

O ministro poderia dizer que a decisão do juiz Villas Boas poderá ser derrubada pelo STF, se o casal recorrer à corte. No máximo, em exercício pleno de seu achismo, falar que ela, provavelmente, será derrubada. Porém, jamais “certamente derrubada”. Quem afirmar isso inexoravelmente, correrá risco de errar. Tal previsão não passa de aposta. Pode até ser uma boa aposta, mas apenas uma aposta.

Há diversas mudanças de posicionamento dos ministros da magna corte do judiciário brasileiro. Mostrarei alguns casos apenas a título de ilustração e sem a menor pretensão exauriente.

Em 04 de março de 2010, o ministro Lewandowski, por exemplo, no meio de uma sessão de julgamento da AP 433 PR, alterou seu próprio voto. “Ministro Ricardo Lewandowski, Vossa Excelência mudou o voto?” (perguntou Ayres Britto) “Eu alterei o voto.” (respondeu Ricardo Lewandowski).

No dia 24 de setembro de 2010, por ocasião do julgamento do RE 630147, o ministro Celso de Mello disse uma frase que ilustra muito bem a deviniência do direito no STF: “nada impedirá que... o tribunal resolva deliberar de outra forma.” “Claro! Não há problema nenhum! O tribunal poderá até, na próxima sessão, tomar outra decisão.” [respondeu Cezar Peluso, girando insistentemente a mão em nítido gesto indicativo de eventual alteração de entendimento]

No dia 9 de abril de 2007, o ministro Eros Grau, relator da ADI 2240 BA, modificou seu voto inicial, para acompanhar a divergência iniciada pelo ministro Gilmar Mendes: “assim, sou arrastado a evoluir e acompanhar o voto do ministro Gilmar Mendes. (…) Pouparei a Corte da reprodução dos meus argumentos, que foram tão bem excedidos pelo ministro Gilmar Mendes.” Tanto é que na ementa se pode ler: “O Tribunal, à unanimidade, julgou procedente a ação direta, e, por maioria, ao não pronunciar a nulidade do ato impugnado, manteve sua vigência pelo prazo de 24 (vinte e quatro) meses até que o legislador estadual estabeleça novo regramento, nos termos do voto reajustado do Senhor Ministro Eros Grau (Relator) e do voto-vista do Senhor Ministro Gilmar Mendes, vencido, nesse ponto, o Senhor Ministro Marco Aurélio, que declarava a nulidade do ato questionado.”

Quem analisar o julgamento da AC 33 PR e do RE 389808 PR verá diversas alterações de posicionamentos dos ministros. A mudança de posição de Gilmar Menes, votando em sentido contrário ao que tinha votado. O reajuste de votos de Dias Toffoli e Cármen Lúcia em relação à anterior negativa de antecipação de tutela, ante o pedido de vista de Ellen Gracie. Não bastasse, a alteração em relação ao pedido de vista de Ellen Gracie, que ficou em dúvidas no que tangia à sua posição anterior, e que, depois de alguns minutos, reconsiderou seu desejo de pedir vista. Por final, um resultado totalmente oposto ao anterior, em razão da mudança de posicionamento de Gilmar Mendes e da alteração de quórum, devido a ausência, nessa sessão, de Joaquim Barbosa.

No dia 27 de abril, os ministros do STF decidiram dois mandados de segurança (30260 e 30272) questionando a diplomação de suplentes de deputados federais [se deveriam ser chamados de acordo com a ordem da coligação ou do partido pelo qual concorreram nas eleições]. Os dois mandados foram denegados. Com isso, a Corte determinou que a vaga pertence a suplente da coligação e não do partido. Em dezembro, no MS 29988, o STF havia decidido, por placar de 5x4, que ao partido pertencia o mandato do suplente.

Somaram-se à minoria, convertida em maioria, as posições de Ellen Gracie e Luiz Fux [que não haviam votado no MS 29988]. Alteraram o posicionamento, em alguns meses, os ministros Joaquim Barbosa, Cézar Peluso, Gilmar Mendes e a relatora, Cármen Lúcia, que, liminarmente, tinha decidido, de modo oposto à sua decisão final, estes mandados de segurança. [Conferir decisão liminar da ministra Cármen Lúcia no MS 30260].

Nada mais nada menos que 4 ministros modificaram suas posições, além de dois ministros reconfigurarem o quórum anterior, gerando uma “nova interferência” no direito, digamos assim, de 6 ministros do STF.

Conforme o ministro Marco Aurélio, ao equipar as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres, o STF não reescreveu a Constituição Federal, como afirmam muito dos críticos da decisão. Marco Aurélio acaba confundido constituição com legislação constitucional. O que se pode “reescrever” é a legislação constitucional ou infraconstitucional. Constituição é construção, é algo em ininterrupta formação. Decisões do STF constituem apenas um tijolo a mais nessa contínua construção. E na permanente constituição (construção) esse tijolo poderá ser, indefinidamente, reformado, retirado e/ou recolocado.

O Supremo Tribunal Federal, segundo Marco Aurélio, “interpretou a Constituição”. O juiz Villas Boas também interpretou a constituição e ele pode o fazer em pleno exercício de sua função de controle difuso de constitucionalidade. O ministro diz ainda que “a decisão [do STF] repercute além dos muros do próprio processo”. As leis também repercutem “além dos muros” das legislações e, nem por isso, estão infensas ao controle de constitucionalidade difuso por parte dos juízes de primeira instância. Marco Aurélio também lembrou que a decisão do STF sobre união estável homoafetiva tem eficácia erga omnes. Ou seja, se aplica a todos, indistintamente. Grande parte das leis possui eficácia erga omnes e se aplica a todos, indistintamente. Nem por isso os juízes de primeiro grau de jurisdição estão impedidos de exercer o controle de constitucionalidade delas.

O ministro Marco Aurélio ressaltou que a decisão do Supremo em relação à matéria foi unânime. Em termos de efeitos práticos das decisão, não parece haver diferenças entre decisões unânimes ou por maioria. Ele pergunta: “Será que todos nós erramos? Será que esse juiz é o dono da verdade?”. Em primeiro lugar, não cabe a juízes errar ou acertar. Mesmo porque não há um “errômetro”, para mensurar acertos e erros de uma decisão jurídica. Cabe aos juízes resolver as demandas judiciais. Mas raciocinando com os termos usados por Marco Aurélio, poder-se-ia questionar: “Será que o juiz Villas Boas errou? Será que os ministros do STF são os donos da verdade?” Por qual razão os ministros do STF poderiam ser “os donos da verdade” e o juiz Villas Boas não? Por que o juiz Villas Boas poderia estar errado e o STF não? As indagações não parariam por ai: quando os ministros do STF “erraram”, no julgamento do MS 29988 ou no julgamento dos MSs 30260 e 30272? Quando o STF errou, no julgamento do AP 33 ou no julgamento do RE 389808?

Apesar das críticas à posição do juiz, Marco Aurélio acredita que ele não deve ser punido: “Não cabe a punição. O que cabe é utilizar o remédio jurídico [no caso, a Reclamação] adequado para rever a decisão”. Para ele, não é possível “compreender o ofício judicante sem independência”. Nesse ponto, a crença de Marco Aurélio parece plausível. Por meio da reclamação, o STF decidiria se reveria a decisão do juiz Villas Boas. [Corregedora-geral da Justiça de GO torna sem efeito decisão que anulou reconhecimento de união homossexual]

Na opinião do ministro, a decisão do juiz de Goiás é ruim para o Judiciário, porque o “cidadão leigo não entende esses descompassos, que geram um contexto de insegurança jurídica”. Marco Aurélio tem todo direito de opinar sobre a decisão do juiz Villas Boas e de reputá-la ruim. Por outro lado, contextos de insegurança jurídica, é bom lembrar, são próprios do direito.

Sabiamente, Marco Aurélio defende que é necessário preservar a independência do juiz, mesmo diante de seus erros. Como ressaltado, não há um “errômetro”, para saber se ele errou ou se Marco Aurélio erra ao dizer que ele errou. Não é Marco Aurélio quem define o certo e o errado em relação ao direito. O juiz Villas boas agiu de acordo com “a ciência e consciência” dele, assim como os ministros do STF agiram em conformidade com a “ciência e consciência” deles.

A notícia informa que Marco Aurélio não vê competência no Conselho Nacional de Justiça para punir o juiz. Como a decisão do juiz goiano não foi um ato administrativo, mas judicial [será?], uma possível punição extrapolaria as atribuição do CNJ que é “um órgão estritamente administrativo”. Parece acertada a opinião do ministro de que ele não deve ser punido, mas será que o ato foi, realmente, judicial? Ato jurídico aparenta ser, mas judicial tenho lá minhas dúvidas, embora tal discussão em nada altere a reflexão em curso.

Em fevereiro passado, continua a reportagem em análise, o ministro Marco Aurélio suspendeu liminarmente a decisão do CNJ que afastou de suas atividades, por dois anos, o juiz Edilson Rodrigues. O magistrado proferiu decisões contrárias à Lei Maria da Penha e, nas decisões, usou termos discriminatórios em relação às mulheres. Para o ministro, o afastamento do juiz foi inadequado “porque as considerações tecidas o foram de forma abstrata, sem se individualizar este ou aquele cidadão”. Aqui, mais uma vez, o ministro aparenta ter caminhado em estrada pavimentada.

Na ocasião, ainda segundo a notícia em exame, Marco Aurélio também se baseou na independência do juiz em matéria jurisdicional para suspender a decisão do CNJ. Na decisão liminar, o ministro ressaltou que “entre o excesso de linguagem e a postura que vise inibi-lo, há de ficar-se com o primeiro, pois existem meios adequados à correção”.

No Supremo Tribunal Federal, prevaleceu, não faz muito tempo, o posicionamento no sentido de que era constitucional a vedação à forma progressiva de cumprimento de pena, conforme decorre do disposto no art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/90. São diversas as decisões em que o STF considerou constitucional o § 1º , do art. 2º, da Lei 8.072/90, isto é, o cumprimento integral da pena em regime fechado, no caso dos crimes hediondos. [HC 69.657-SP, HC 69.603-SP, HC 69.377-MG, HC 75.634-SP, HC 69.657 SP, HC 81.288- SC, entre outros]

A situação atual, entretanto, é diametralmente oposta. A partir do HC 82.959/SP, o STF que, até então, considerava o § 1º, art. 2º, da Lei 8.072/90 constitucional, passou a considerá-lo inconstitucional.

Resta a perplexidade de um questionamento que não pode deixar de ser feito. A decisão do juiz de GO não tira a prerrogativa do STF de, em caso de reclamação poder revê-la ou, eventualmente, mudando de posição, confirmá-la. Não teria a menor pertinência jurídica afirmar que o STF reveria seu posicionamento e confirmaria a decisão do magistrado de primeiro grau. Por outro lado, com igual razão, não teria a menor pertinência afirmar que a decisão delecertamente será derrubada pelo Supremo Tribunal Federal, se o casal recorrer à Corte.”, pois o mesmo STF que considerou constitucional o § 1º, art. 2º, da Lei 8.072/90 e, depois, o considerou inconstitucional, poderia considerar constitucional a união estável entre pessoas do mesmo sexo e, depois, deixar de assim considerar...

2 comentários:

Rodrigo Sartoti disse...

A decisão do STF tem efeito vinculante.

Anderson disse...

Caro Osvaldo,

Na esteira da nossa conversa via twitter, impressiona-me como o discurso das minorias tem se tornado autoritário, a exemplo dos que queriam a derrubada do juiz que "ousou" discordar do STF, como se houvesse "crime de hermenêutica". Pregam o pluralismo na estrita medida da sua conveniência. Não admitem discordância ou revisão. Desejam para si isenção dos dissabores do confronto de ideias. Derrubam dogmas tão só para abraçar novos outros.
E os ministros do STF, embora mais suavemente, vão engolindo esse discurso, a exemplo do Luiz Fux, que disse se tratar de um "atentado ao STF".
Ora, o STF pode ter a última palavra sobre a Constituição, mas não tem a única. Ademais, o fato de o STF ter a última palavra sobre a Constituição fala mais sobre segurança jurídica do que sobre justiça.